domingo, 12 de agosto de 2018

Pequenas Histórias



Meu processo criativo sempre foi barrado pelo “propósito”, pela “finalidade”. Qual a utilidade disso que vou escrever? E por muitas vezes, algumas histórias não nasceram.
Essa ficou uns dias na minha cabeça. Conversando comigo. Tentando me convencer de que nem sempre há um claro propósito, de que ele pode vir depois, talvez anos depois.
Então eu cedi. E em alguns minutos ela nasceu no papel. Sem finalidade.

Foi criada porque já existia e exigia ser conhecida. Simples assim.



O Mestre e a Discípula

Fazia frio. Muito frio. O vento zunia trazendo pequenas farpas de gelo. Ela podia sentir nos ossos as agudas pontadas. Isso não era nada. Havia uma determinação em brasa dentro dela, e isso seria o suficiente para mantê-la em pé o tempo que fosse necessário.
Uma vez depois de outra, ela tentava. Já havia perdido a conta de quantas vezes tinha recomeçado, até que conseguiu. E mais uma vez, e outra. A alegria da conquista se espalhou por seu corpo prazerosamente.
Os primeiros raios do Sol se juntaram em sua comemoração. Poderia demonstrar ao seu Mestre o que agora dominava.
Correndo pelas ladeiras, sua mente já projetava os olhos encantadores cheios de orgulho focados apenas nela. Antes fosse seu coração a correr do que suas pernas – de certo chegaria mais rápido.
E tudo durou uma eternidade dentro de um instante. A porta da frente da casa dele se abriu, e um anjo vestido de mulher saiu em seguida a ele. Houve um abraço e um caloroso beijo.
Ela pode ouvir seu próprio coração parar. Sua boca secou e seus olhos arderam. E quando recebeu os olhares de surpresa vindos da edícula, uma forte batida em seu peito a fez voltar a ser quem era – ou quase isso.
Seu impulso foi partir. Fugir o mais longe que poderia dali.
Não saberia dizer por quanto tempo correu, mas com certeza foi menos do que gostaria. Depois de algumas horas sentiu seu corpo esgotar suas forças e uma escuridão torporosa tomou conta de tudo.
Quando recobrou a consciência, estava deitada entre alguns arbustos. A luz poente indicava o tempo que havia passado ausente de sua própria realidade. Não estava habituada àquele cenário, mas o barulho do rio denunciava a presença de água. Lentamente se esticou até lá.
Decidiu que sua noite seria ali mesmo. Ela precisava entender o que estava acontecendo.
Pela primeira vez em cinco anos não passou o entardecer treinando. Pela primeira vez em cinco anos, não viu os mais belos olhos sorrindo, não ouviu a voz mais serena e gentil chamar por seu nome, nem recebeu a mão estendida mais firme e quentinha do mundo para que ela levantasse.
Ainda se lembrava vividamente do dia em que ele lhe aceitou como discípula. Fora a escolhida entre muitas crianças. Muitas promessas silenciosas aconteceram ali.
Repassou a partir de então cada dia que se seguiu a essa lembrança inicial. Buscou detalhadamente. Minuciosamente. Nada encontrou. E no calor das lágrimas que inundavam seu rosto conseguiu concluir. Nunca houve um pedido dele pelo coração dela, mas mesmo assim ela havia lhe entregado a própria alma.
As estrelas foram suas companheiras naquela noite. E seu próprio lamento o som que a embalou ao sono profundo horas depois.
O despertar pela manhã veio com a imagem de um rosto em sua mente: já conhecia aquela mulher. E uma dor visceral seguiu-se à sua lembrança: ela era mesmo um anjo. Havia chegado ao vilarejo há poucos meses, e trazia muitos conhecimentos sobre ervas e flores.  Curou muitas pessoas, inclusive a ela.
Sentiu agora queimar a área da cicatriz. Um emplasto que fora preparado carinhosamente por aquela mulher fora colocado ali há algumas semanas. Naquele dia não sentiu arder a área escalpelada, estava hipnotizada pela doçura que era emanada pela voz e pelo toque da curandeira. Recebeu alguns tônicos e um extrato para seus cabelos, com um cheiro igual ao dos campos de lavanda.
Essas memórias a deixaram com mais raiva. Como ela queria odiar essa mulher para o resto de sua vida ... mas isso seria impossível. E uma nova torrente de lágrimas se seguiu.
Ouviu um barulho se aproximando e correu para cima de uma árvore. Observou seu Mestre de costas se agachando onde minutos antes ela própria estava deitada.
O tempo parou. E pode sentir o coração dele conversando com o dela. O amor que os habitava era de natureza diferente. E quando ela fechou os olhos ela soube: nunca mais poderia vê-lo novamente.
Como se ele tivesse sentido a decisão por ela tomada, se levantou e permaneceu mais algum tempo de pé, de costas.
Ela aceitou aqueles minutos como sua despedida. E sorveu o mais profundo dos ares partilhado a distância. E então ele se retirou.
Descendo da árvore ela voltou ao local onde ele estava. Encontrou ali uma carta e uma flor. Colocou ambos no bolso e suspirou. Quem sabe daqui alguns anos, quando pudesse superar a própria dor, pudesse ler o que havia ali escrito. Por hora, seguiria no silêncio e na companhia da ferida em sua alma.
E tomando a direção contrária daquele que seria para sempre seu amado Mestre, partiu em busca da sua própria cura.

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