Meu processo criativo sempre foi barrado pelo “propósito”, pela “finalidade”. Qual a utilidade disso que vou escrever? E por muitas vezes, algumas histórias não nasceram.
Essa ficou uns dias na minha cabeça. Conversando comigo. Tentando me
convencer de que nem sempre há um claro propósito, de que ele pode vir depois, talvez
anos depois.
Então eu cedi. E em alguns minutos ela nasceu no papel. Sem
finalidade.
Foi criada porque já existia e exigia ser conhecida. Simples assim.
O Mestre e a Discípula
Fazia frio.
Muito frio. O vento zunia trazendo pequenas farpas de gelo. Ela podia sentir
nos ossos as agudas pontadas. Isso não era nada. Havia uma determinação em
brasa dentro dela, e isso seria o suficiente para mantê-la em pé o tempo que
fosse necessário.
Uma vez
depois de outra, ela tentava. Já havia perdido a conta de quantas vezes tinha
recomeçado, até que conseguiu. E mais uma vez, e outra. A alegria da conquista
se espalhou por seu corpo prazerosamente.
Os primeiros
raios do Sol se juntaram em sua comemoração. Poderia demonstrar ao seu Mestre o
que agora dominava.
Correndo
pelas ladeiras, sua mente já projetava os olhos encantadores cheios de orgulho focados
apenas nela. Antes fosse seu coração a correr do que suas pernas – de certo
chegaria mais rápido.
E tudo durou
uma eternidade dentro de um instante. A porta da frente da casa dele se abriu,
e um anjo vestido de mulher saiu em seguida a ele. Houve um abraço e um
caloroso beijo.
Ela pode
ouvir seu próprio coração parar. Sua boca secou e seus olhos arderam. E quando
recebeu os olhares de surpresa vindos da edícula, uma forte batida em seu peito
a fez voltar a ser quem era – ou quase isso.
Seu impulso
foi partir. Fugir o mais longe que poderia dali.
Não saberia
dizer por quanto tempo correu, mas com certeza foi menos do que gostaria.
Depois de algumas horas sentiu seu corpo esgotar suas forças e uma escuridão
torporosa tomou conta de tudo.
Quando
recobrou a consciência, estava deitada entre alguns arbustos. A luz poente
indicava o tempo que havia passado ausente de sua própria realidade. Não estava
habituada àquele cenário, mas o barulho do rio denunciava a presença de água.
Lentamente se esticou até lá.
Decidiu que sua
noite seria ali mesmo. Ela precisava entender o que estava acontecendo.
Pela primeira
vez em cinco anos não passou o entardecer treinando. Pela primeira vez em cinco
anos, não viu os mais belos olhos sorrindo, não ouviu a voz mais serena e
gentil chamar por seu nome, nem recebeu a mão estendida mais firme e quentinha
do mundo para que ela levantasse.
Ainda se
lembrava vividamente do dia em que ele lhe aceitou como discípula. Fora a
escolhida entre muitas crianças. Muitas promessas silenciosas aconteceram ali.
Repassou a
partir de então cada dia que se seguiu a essa lembrança inicial. Buscou
detalhadamente. Minuciosamente. Nada encontrou. E no calor das lágrimas que
inundavam seu rosto conseguiu concluir. Nunca houve um pedido dele pelo coração
dela, mas mesmo assim ela havia lhe entregado a própria alma.
As estrelas
foram suas companheiras naquela noite. E seu próprio lamento o som que a
embalou ao sono profundo horas depois.
O despertar
pela manhã veio com a imagem de um rosto em sua mente: já conhecia aquela
mulher. E uma dor visceral seguiu-se à sua lembrança: ela era mesmo um anjo.
Havia chegado ao vilarejo há poucos meses, e trazia muitos conhecimentos sobre
ervas e flores. Curou muitas pessoas,
inclusive a ela.
Sentiu agora
queimar a área da cicatriz. Um emplasto que fora preparado carinhosamente por
aquela mulher fora colocado ali há algumas semanas. Naquele dia não sentiu
arder a área escalpelada, estava hipnotizada pela doçura que era emanada pela
voz e pelo toque da curandeira. Recebeu alguns tônicos e um extrato para seus
cabelos, com um cheiro igual ao dos campos de lavanda.
Essas
memórias a deixaram com mais raiva. Como ela queria odiar essa mulher para o
resto de sua vida ... mas isso seria impossível. E uma nova torrente de
lágrimas se seguiu.
Ouviu um
barulho se aproximando e correu para cima de uma árvore. Observou seu Mestre de
costas se agachando onde minutos antes ela própria estava deitada.
O tempo
parou. E pode sentir o coração dele conversando com o dela. O amor que os
habitava era de natureza diferente. E quando ela fechou os olhos ela soube: nunca
mais poderia vê-lo novamente.
Como se ele
tivesse sentido a decisão por ela tomada, se levantou e permaneceu mais algum
tempo de pé, de costas.
Ela aceitou
aqueles minutos como sua despedida. E sorveu o mais profundo dos ares
partilhado a distância. E então ele se retirou.
Descendo da
árvore ela voltou ao local onde ele estava. Encontrou ali uma carta e uma flor.
Colocou ambos no bolso e suspirou. Quem sabe daqui alguns anos, quando pudesse
superar a própria dor, pudesse ler o que havia ali escrito. Por hora, seguiria
no silêncio e na companhia da ferida em sua alma.
E tomando a
direção contrária daquele que seria para sempre seu amado Mestre, partiu em busca
da sua própria cura.
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