quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Crianças perdidas pelo Caminho

Download Coração Vermelho Nas Mãos Da Mulher E Da Criança E Com O Estetoscópio Do ` S Do Doutor Foto de Stock - Imagem de miúdo, família: 99334986



Olhar para o paciente e não ter certeza do melhor remédio pra ele. Puxar pela memória os consensos, os trabalhos que indicaram e depois contra-indicaram. Seguir o livro e não obter os resultados.
Eu fugi da experiência. Da oportunidade de ter meu próprio conjunto de erros e acertos que me norteasse mais do que os estudos baseados numa população que não é a minha.
Eu acredito na individuação. E talvez essa tenha sido a fonte dos meus sofrimentos com a minha profissão. Porque eu me colocava numa posição muito cartesiana. Então eu me obrigava a fazer o que era o aceito, julgava sem dó os colegas mais experientes que “faziam protocolos da cabeça deles”. E na verdade, era um Eu meu que não aceitava as receitas de bolo, e era posto por mim na minha Sombra (que eu projetava com raiva em alguns colegas).
E desde que eu mudei de cidade eu tive que olhar para essa Médica Convencional que eu havia enterrado dentro de mim. E foi tão doloroso. Imensamente. Quando eu abri a porta dela, veio tanta raiva ...  
Eu sempre amei estudar, passei minha infância e adolescência dedicada a um objetivo. E eu consegui. Passei na Fuvest em Medicina. E essa criança, ficou perdida em algum lugar da minha história profissional. Enterrada junto com a Clínica.
Tranquei porque não aguentava sentir frustração. Tentar, tentar e não conseguir. Não conseguir curar.
Um dia na aula de psicologia médica da graduação, eu me opus veementemente à Professora, dizendo que o medico não queria curar, ele queria era combater o sofrimento humano. Mentira. O médico quer curar. E uma consequência da cura é a melhora do sofrimento. O médico quer resultado. Eu era uma médica que queria resultado, e por isso era frustrada.  Era muito imatura para olhar para isso ainda.
E agora liberando essa parte, achei a criança. Aquela que amava estudar, que sentia prazer em fazer provas, em explicar o que aprendia. Achei a criança que hoje senta aqui comigo para estudar e relembrar anos de clínica deixados para trás. E junto sinto uma força imensa.
Quantas crianças será que temos que acolher em nós? Quantas partes nossas perdemos ou trancamos ao longo do caminho?
Não sei ... com certeza será um trabalho para a vida inteira.
Pronto Universo ... por um ano você me deu várias razões para eu olhar para a Clínica. Uma delas foi até engraçada: quando eu disse a primeira vez que eu voltaria a dar plantão de Clínica, um corretor ligou logo em seguida pra mim dizendo que havia interessados na compra do meu apartamento. E ele foi vendido nessa ocasião. Mas depois eu sempre dava um jeitinho e corria da ideia do exercício da Clínica Médica.
Agora não mais. E até esse texto é um compromisso redigido e firmado entre todas as minhas partes. E o ONDE não pertence a mim  (né Universo?), e tudo bem, nem o quando (embora um pouco a contragosto rsrsrs).
Estou disponível aos novos desafios. Que surpresa hein Universo? Buscando a Espiritualidade eu descubro a necessidade de me reconciliar com a Matéria. Buscando minha realização profissional, eu encaro a necessidade de viver novamente a Medicina da Matéria.
Talvez lá na frente eu encontre o Caminho do Meio ... o equilíbrio. No momento vou fortalecer a parte enfraquecida que agora trago junto a mim novamente. De volta aos estudos e com prazer.
E salve nossa Criança Interior! Salve!!!

domingo, 12 de agosto de 2018

Pequenas Histórias



Meu processo criativo sempre foi barrado pelo “propósito”, pela “finalidade”. Qual a utilidade disso que vou escrever? E por muitas vezes, algumas histórias não nasceram.
Essa ficou uns dias na minha cabeça. Conversando comigo. Tentando me convencer de que nem sempre há um claro propósito, de que ele pode vir depois, talvez anos depois.
Então eu cedi. E em alguns minutos ela nasceu no papel. Sem finalidade.

Foi criada porque já existia e exigia ser conhecida. Simples assim.



O Mestre e a Discípula

Fazia frio. Muito frio. O vento zunia trazendo pequenas farpas de gelo. Ela podia sentir nos ossos as agudas pontadas. Isso não era nada. Havia uma determinação em brasa dentro dela, e isso seria o suficiente para mantê-la em pé o tempo que fosse necessário.
Uma vez depois de outra, ela tentava. Já havia perdido a conta de quantas vezes tinha recomeçado, até que conseguiu. E mais uma vez, e outra. A alegria da conquista se espalhou por seu corpo prazerosamente.
Os primeiros raios do Sol se juntaram em sua comemoração. Poderia demonstrar ao seu Mestre o que agora dominava.
Correndo pelas ladeiras, sua mente já projetava os olhos encantadores cheios de orgulho focados apenas nela. Antes fosse seu coração a correr do que suas pernas – de certo chegaria mais rápido.
E tudo durou uma eternidade dentro de um instante. A porta da frente da casa dele se abriu, e um anjo vestido de mulher saiu em seguida a ele. Houve um abraço e um caloroso beijo.
Ela pode ouvir seu próprio coração parar. Sua boca secou e seus olhos arderam. E quando recebeu os olhares de surpresa vindos da edícula, uma forte batida em seu peito a fez voltar a ser quem era – ou quase isso.
Seu impulso foi partir. Fugir o mais longe que poderia dali.
Não saberia dizer por quanto tempo correu, mas com certeza foi menos do que gostaria. Depois de algumas horas sentiu seu corpo esgotar suas forças e uma escuridão torporosa tomou conta de tudo.
Quando recobrou a consciência, estava deitada entre alguns arbustos. A luz poente indicava o tempo que havia passado ausente de sua própria realidade. Não estava habituada àquele cenário, mas o barulho do rio denunciava a presença de água. Lentamente se esticou até lá.
Decidiu que sua noite seria ali mesmo. Ela precisava entender o que estava acontecendo.
Pela primeira vez em cinco anos não passou o entardecer treinando. Pela primeira vez em cinco anos, não viu os mais belos olhos sorrindo, não ouviu a voz mais serena e gentil chamar por seu nome, nem recebeu a mão estendida mais firme e quentinha do mundo para que ela levantasse.
Ainda se lembrava vividamente do dia em que ele lhe aceitou como discípula. Fora a escolhida entre muitas crianças. Muitas promessas silenciosas aconteceram ali.
Repassou a partir de então cada dia que se seguiu a essa lembrança inicial. Buscou detalhadamente. Minuciosamente. Nada encontrou. E no calor das lágrimas que inundavam seu rosto conseguiu concluir. Nunca houve um pedido dele pelo coração dela, mas mesmo assim ela havia lhe entregado a própria alma.
As estrelas foram suas companheiras naquela noite. E seu próprio lamento o som que a embalou ao sono profundo horas depois.
O despertar pela manhã veio com a imagem de um rosto em sua mente: já conhecia aquela mulher. E uma dor visceral seguiu-se à sua lembrança: ela era mesmo um anjo. Havia chegado ao vilarejo há poucos meses, e trazia muitos conhecimentos sobre ervas e flores.  Curou muitas pessoas, inclusive a ela.
Sentiu agora queimar a área da cicatriz. Um emplasto que fora preparado carinhosamente por aquela mulher fora colocado ali há algumas semanas. Naquele dia não sentiu arder a área escalpelada, estava hipnotizada pela doçura que era emanada pela voz e pelo toque da curandeira. Recebeu alguns tônicos e um extrato para seus cabelos, com um cheiro igual ao dos campos de lavanda.
Essas memórias a deixaram com mais raiva. Como ela queria odiar essa mulher para o resto de sua vida ... mas isso seria impossível. E uma nova torrente de lágrimas se seguiu.
Ouviu um barulho se aproximando e correu para cima de uma árvore. Observou seu Mestre de costas se agachando onde minutos antes ela própria estava deitada.
O tempo parou. E pode sentir o coração dele conversando com o dela. O amor que os habitava era de natureza diferente. E quando ela fechou os olhos ela soube: nunca mais poderia vê-lo novamente.
Como se ele tivesse sentido a decisão por ela tomada, se levantou e permaneceu mais algum tempo de pé, de costas.
Ela aceitou aqueles minutos como sua despedida. E sorveu o mais profundo dos ares partilhado a distância. E então ele se retirou.
Descendo da árvore ela voltou ao local onde ele estava. Encontrou ali uma carta e uma flor. Colocou ambos no bolso e suspirou. Quem sabe daqui alguns anos, quando pudesse superar a própria dor, pudesse ler o que havia ali escrito. Por hora, seguiria no silêncio e na companhia da ferida em sua alma.
E tomando a direção contrária daquele que seria para sempre seu amado Mestre, partiu em busca da sua própria cura.