domingo, 16 de dezembro de 2018

Quando quebramos e somos quebrados






“Essa é a história de Inácio.
Filho único, criado por sua mãe e seu padrasto. Pai falecido quando ele ainda era um bebê.
O padrasto gostava de ficar de conversa e de bebida. Sua mãe era quem buscava o sustento do lar pelo mundo a fora.
Quando apanhava da mãe, sentia que não era a ele que ela via quando olhava nos seus olhos.
Quando apanhava do padrasto, não via seus olhos.
Ainda jovem fugiu de casa, com o corpo e com o coração cheios de cicatrizes.
E gostaríamos de contar que apesar dos pesares, ele superou as dores do mundo e foi luz e amor em seu caminho. Não podemos.
Uma vida cheia de raiva, cheia de dor. Muitos lares foram feridos por suas mãos. Muitas lágrimas foram derramadas por sua presença.
Um dia o corpo de Inácio faleceu.
E lúcido de que a sua consciência continuou viva apesar da veste biológica em putrefação, paralisou-se.
Luzes apareceram e ofereceram ajuda.”Está tudo bem. Venha conosco, vamos começar a curar a sua dor e, juntos, auxiliaremos na dor de todos que passaram pelo seu caminho.”
Não! Não,ele não se sentia digno. O que tinha feito era sujo e dolorido demais. Ele correu, correu, tentando fugir de si mesmo.
Encontrou um lugar fétido e escuro que representava bem como se sentia por dentro. E não queria mais sair dali.
Permitiu que toda sorte de abusadores maltratassem aquilo que ele representava.
E todas as vezes em que era visitado por nós, encolhia-se e congelava.
“Querido Inácio, de que vale seu sofrimento? Tudo o que você ofereceu durante a sua vida era a melhor resposta que você tinha para dar. Ferir-se não será remédio para nenhuma das pessoas que você machucou. Venha, nos acompanhe. Mostraremos a você como reparar cada situação de que se arrepende.”
Por muitas vezes conversamos com Inácio, sem que ele levantasse sua cabeça. Sabíamos que apesar de não responder, nossos sentimentos amorosos fluíam como bálsamo para a dor de seu coração.
Um dia, Inácio permitiu-se receber ajuda.
Hoje trabalha junto conosco, descendo aos lugares mais escuros, buscando aqueles que procuram esconder-se de si mesmo assim como ele fez um dia. Ele sempre é um dos primeiros a se embrenhar nos emaranhados escuros, e muitas vezes trouxe no colo irmãos deformados por autoflagelos.
Ele pede agora que esta mensagem fique bem clara.
Está tudo certo. É possível reparar a semeadura espinhosa com serviço e com amor.  O sofrimento é uma escolha pessoal. A dor não agrega cura ao sistema. Ela apenas permite que o algoz sinta-se quite consigo mesmo para poder se olhar novamente.
Quando um vaso é quebrado e sua água é derramada, qual a melhor solução para o sistema? Correr para longe quebrando a si mesmo por anos a fio? Ou, abaixar-se, juntar os pedacinhos um a um, e limpar o conteúdo extravasado?
O sofrimento é uma escolha pessoal. A culpa é toxina paralisante. O autoflagelo é um recurso à falta de acolhimento e amor consigo mesmo.
Serviço com Amor. Acolher a seus próprios limites do presente. Estender a mão e o olhar compassivo a todos ao seu redor. Estamos todos juntos, na mesma sala cheia de vasos quebrados. Há muitos panos e cola por aqui. E não há julgamentos. “

E era Inácio quem aparecia, quando nas conversas em meu consultório a questão era “o que fazemos conosco - mesmo que inconscientemente - quando sentimos culpa”. Inspirado por ele, eu bagunçava toda minha mesa montando cenários para ilustrar as palavras. Gratidão, gratidão,gratidão.